A Neve

Hoje acordámos com a neve a cair intensamente...Que frio se fazia sentir quando abrimos as janelas! Flocos de neve "branca"? a tocar ao de leve no nosso rosto! Uma espécie de "novo Natal" a chegar para nos acariciar um pouco.
Apressámo-nos a tirar algumas fotos...Temos vários ângulos de visão, mas a nossa casa está rodeada de outras casas, ainda assim fomos conseguindo!
Já parou de nevar... o astro continua com o tom branco aveludado, misterioso, como acontece sempre que neva...
Estou no quentinho mas sinto a nostalgia deste dia cheio de beleza de brancura e de saudade...

"A casa da saudade chama-se memória: é uma cabana pequenina a um canto do coração". (Henrique Maximiliano Neto)



Ontem li este conto e lembrei-me de partilhar alguns extratos, fala de uma neve especial...

..."O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano tal­vez a deixem lançar o foguete sozinho. Também tem uma história para contar, só está a espera de uma pausa, de um momento mágico em que todos se calem, acaso emudeci­dos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, e agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá al­guma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança.
Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, como uma varanda dando para terras igno­radas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os bravos cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vem risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.
Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são dife­rentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da Criança, o chão duro e gelado range. E, em fren­te, as árvores negras, misteriosas, onde a noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecera o terceiro nascimento, e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, ate mes­mo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.
As Crianças estão sempre a nascer. As vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbra­mentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, e nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada des­gosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer.


Um dia uma Professora teve uma ideia de Professo­ra e mandou aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lus­tro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira». Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto a costume nestes ca­sos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Vir­gem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretaria da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota.
Ia marcando «bom», «mau», suficiente», como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda te­remos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um dese­nho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a res­tante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porque?», pergunta a Professora à Menina que fez o de­senho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os ri­sos cruéis e os murmúrios de troca que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: «Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu». Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: «À Lua já chegamos, mas quando e como consegui­remos chegar ao espírito de uma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?».
Muitos anos depois de estas histórias terem aconteci­do, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: «E eles ainda estão tristes?». Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso".
(José Saramago - História de um muro branco de uma neve preta - Extractos)

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